quarta-feira, 25 de abril de 2012

Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".

Há alguns anos (Deus, ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus), enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro. Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer, eu já estava lá dentro. E ficar dentro disso tudo,não sei dizer se é bom ou ruim. Não me entenda mal. Não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Poucos encontros, muitos silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida".De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre a mesa de madeira e os copos com a bebida pela metade, entre um pouco de sal que restou na mesa e o pacote que não tiramos da mesa. Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegida, você sabe como. A vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Meus olhos, olhavam a outra pessoa e suavemente fazia perguntas, investigavam terrenos: "ah você não come berinjela, ah você não bebe cerveja, ah você é do signo de Peixes". Traçando esboços, as duas partes. Tateando traços difusos. Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele momento que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Cabeça e coração." Era isso, aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida virá o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de me desligar do mundo olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria. Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecida. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania.

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