sábado, 19 de outubro de 2013

Breve crônica sobre a saudade

Mais uma vez eu viu o relógio mudar rapidamente de meia-noite para uma da manhã os minutos da primeira hora da madrugada. Apesar da quase rotina, esse hábito ainda causava um certo desconforto; parecia haver hora certa para lembrar dela. Balbuciei o palavrão de sempre, estaloei os dedos e procurei os óculos no escuro. Já previa a dor nos olhos antes mesmo de acender a luz, então decidi descer a escada no breu mesmo. Abri metade da janela, observei a chuva por alguns minutos, lembrei das noites chuvosas ao lado dela, lembrei do vidro embaçado e da música suave das gotas atingindo-o, lembrei do edredom roxo ou violeta ou púrpura – nunca soube qual a verdadeira identidade cromática do negócio e também não levei o assunto à ela – e do cachorro dormindo embaixo da cama. Lembrei dela, do sono dela, da maneira como os olhos dela se apertavam quando ela dormia, das asas redondas do nariz, dos lábios finos convidando-o para um beijo. Lembrei do cheiro da respiração dela e respirei profundamente, como que querendo encontrar tal cheiro no ar. Falhei.

Fui acordada do sonho-acordado por uma distante sirene de polícia, andei lentamente até o fogão e aqueci uma medida de água. Enquanto aguardava, reparei na quase dúzia de folhas de caderno escritas e rasuradas e espalhadas na mesa numa ordem que somente eu entendia. E nessas folhas, palavras que somente ela entenderia.

Sonhei de novo, e dessa vez com os vários bilhetes que escondi pelo quarto dela, bilhetes recheados de pequenas juras e promessas e micro-elogios que arrancariam dela aquele sorriso que só ele conhecia, bilhetes assinados pela metade, que mostravam o quão inteiro eu era com a metade dela. Acordei novamente, dessa vez com o apito da chaleira, xinguei a chaleira, disfarcei muito mal um sorriso, terminei de preparar o chá e aqueci a garganta com goles curtos. Era normal esquecer do mundo quando me lembrava dela. Era comum.

Larguei a xícara na mesa, apaguei a luz e, antes de voltar à cama, vi a luz amarela e deprimida de um poste atravessar a janela e repousar na cadeira ao lado. Como previsto, senti o costumeiro aperto no peito e também a solidão tocando meus ombros. Tudo naquela casa lembrava dois, à dois, os dois, mesmo sem nunca ter existido dois naquele espaço. Repare bem: naquele espaço. A cadeira vazia servindo de repouso para o braço, o número de talheres e pratos e copos, a mesa redonda e pequena, o box do banheiro, a cama de solteiro (para dormirmos mais próximos). Senti o chão gelado abaixo dos pés e desejei os pés dela colados nos meus. Voltei pra cama, olhei a foto dela na tela do celular, rezei por ela e reclamei comigo mesma, com meu próprio Deus, sobre as lágrimas que se acumulavam nos cantos dos olhos contra a minha vontade. Alguns minutos depois da primeira hora da madrugada, eu tirou os óculos e os deixei no chão mesmo; ela não estaria ali para pisar neles meio que por engano. E como esperado, não dormi.


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